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Miserecas têm poder na região mais pobre da Capital

Data: 02/12/2020 09:51

Autor: Diário Digital

Crianças ajudam a sustentar a casa 'comprando' mantimentos e outros itens com moeda social

 

O pequeno Lucas Gabriel Benites só tem 12 anos, mas é ele quem leva grande parte do sustento da família para casa no Bairro Dom Antônio Barbosa, região mais pobre de Campo Grande (MS). "Eu sempre compro comida", diz. "Mas gosto de levar brinquedos também", entrega mostrando a bola recém-adquirida com o uso das Miserecas, uma moeda social cuja função vai muito além do consumismo.

A moeda que garante as 'compras' de Lucas circula no Projeto Escolinha Filhos da Misericórdia (daí o nome Miserecas), da Igreja Católica. A escolinha foi criada para atender famílias que, durante muitos anos, tiraram seu sustento no antigo lixão, mas que com o fechamento dele, tornaram-se catadores desempregados sem ter acesso ao básico para sobreviver. O projeto começou em 2013 fornecendo cestas básicas e promovendo atividades para as crianças no contraturno da escola.

Hoje, alimenta as famílias e ensina educação financeira na prática a cerca de 70 crianças com idade entre 6 e 12 anos usando as Miserecas. A escolinha recebe doações e, ao inves de fazer a distribuição direta, 'vende' os alimentos, roupas, calçados e briquedos para as crianças. Cada uma delas recebe mensalmente uma quantia em Miserecas que corresponde a R$ 1.045,00. A partir daí, elas têm automia para fazer as 'compras' nos dias de mercado.

Com Miserecas, crianças compram brinquedos, alimentos e outros produtos (Fotos: Marco Miatelo)

"Os pais não podem ir no dia das compras. É a criança quem faz as escolhas sozinha. Tem alguns que levam a comida do mês para a casa. Elas têm liberdade para pegar o que quiserem no mercado, sempre dentro do limite de Miserecas que cada uma recebe. Nas aulas da escolinha, são orientadas
sobre como dividir o dinheiro", explica o padre Agenor Martins da Silva, presidente do Instituto Misericordes Sicut Pater, entidade mantenedora da escolinha.

O padre relembra o dia em que o projeto recebeu uma doação de bolsas da marca Louis Vuitton. "O valor das bolsas é alto no mercado e trouxemos essa realidade para as crianças. Assim, abrimos a possibilidade delas emprestarem entre si, sendo necessário pagar no mês seguinte", detalha. Os alunos também são orientados a economizar Miserecas para o mês seguinte, como forma de pouparem para emergências ou aquisições inesperadas como o caso das bolsas.

As Miserecas também são usadas para ensinar boas maneiras, responsabilidade, cidadania e outros. A criança que tem comportamento ruim leva multa que precisa ser paga em Miserecas. O valor será abatido da quantia mensal de modo que o aluno receberá menos Miserecas para passar o mês. A criança poderá ser multada caso se envolva em brigas, chegue atrasada ou seja mal educada com os coleguinhas, por exemplo.

Miserecas são usadas para incentivar boas maneiras e a responsabilidade (Fotos: Marco Miatelo)

"Tem que ter respeito e bondade", resume Lucas Gabriel que garante seguir à risca os ensinamentos para não perder nenhuma Misereca. As moedas foram improvisadas em notas que simulam as de R$ 2, mas em tamanho menor. Todas as cédulas são devidamente carimbadas.

A coordenadora da escolinha, Viviane Sei Ferreira, explica que a distribuição das Miserecas leva em conta ainda as notas obtidas na escola regular. "Queremos que compreendam que seu esforço é a melhor forma de transformar situação de miséria em prosperidade", relata.

O vídeo abaixo mostra as crianças em dia de mercado, comprando roupas e outros itens para levar para casa com uso das Miserecas. Esta ação foi realizada antes da pandemia do novo coronavírus.

Vídeo foi divulgado pelo projeto Miserecas.

Mais poupadores e menos endividados - Recentemente, o projeto ganhou a ajuda da cooperativa Sicredi que levou palestras ao local para incentivar os pais e as crianças a se tornarem poupadores. A cooperativa realizou ainda um bazar com briquedos e doces, no qual, as crianças, mais uma vez, tiveram que sacar suas Miserecas para fazer as compras.

Sicredi levou bazar e ensinamentos às crianças do projeto (Fotos: Marco Miatelo)

"Trouxemos um conjunto de informações para evitar que as pessoas se tornem endividadas. Dizemos a eles que o endividado não é tão feliz", explica Paulo Brum, assessor de Desenvolvimento do Cooperativismo
do Sicredi. "A gente mostra que vale a pena poupar em qualquer camada social. Se a pessoal poupar R$ 1 por dia, ao final de um ano e dois meses, ela poderá comprar uma bicicleta", ensina.

As dicas de economia doméstica repassadas por Paulo Brum cabem em famílias de qualquer orçamento. Ele reforça a importância de atitudes do tipo 'desligar as luzes quando sair do ambiente', 'desligar a água para escovar os dentes', 'não demorar no banho' e 'guardar o que sobra'.

Atenta às explicações, Juliana de Barros Lopes, de 28 anos, mãe de quatro crianças, sendo três frequentadores da Escolinha da Misericórdia conta o que aprendeu. "Aprendi que não posso ficar fazendo todos os gostos dos meus filhos. Não posso gastar o troco do mercado com chocolatinhos. Preciso guardar o que sobra e tenho que ensinar isso para eles", comenta.

Juliana Barros tem três filhos na Escolinha da Misericórdia (Fotos: Marco Miatelo)

Pequenos poupadores - O Bazar do Sicredi ofereceu produtos bem ao gosto das crianças, mas tudo tinha seu preço. Contudo, nenhum deles se esqueceu das lições da escolinha ou da necessidade de reservar moedas para ajudar em casa.

Maria Fernanda Pereira, 12 anos, escolheu uma bola e um joguinho de damas. "Gastei oito Miserecas. Chega por hoje. Sei que tenho que guardar dinheiro", diz a menina. Já Daniel Lucas, 8 anos, preferiu um cubo mágico. "Custou quatro Miserecas, mas ainda tenho outras sobrando", revela.

A ação do Sicredi em comunidades pobres mobiliza colaboradores da cooperativa que se habilitam voluntariamente para participar das atividades. Gerente de uma unidade Sicredi no Centro de Campo Grande, Andressa Pereira Rocha se fantasiou de palhaça para ganhar a atenção das crianças para a causa da educação financeira infantil.

Gerente do Sicredi, Andressa Lopes se fantasiou para a atividade (Fotos: Marco Miatelo)

"Eu acredito que a educação financeira tem que começar na infância. Essa é a fórmula para que no futuro tenhamos mais poupadores do que endividados", afirma.

Atualmente, a realidade no País está distante desse ideal. Estudos apontam que o endividamento bateu recordes em 2020. No mês de Outubro, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) apontou que o percentual de famílias brasileiras endividadas era de 66,5%. O pico do ano, contudo, foi o mês de Agosto com 67,5%.

Em Campo Grande, a Peic constatou índice de 62,8%. Em números absolutos, são 196.800 famílias endividadas em Outubro, seja com cheques pré-datados, cartões de crédito, carnês de lojas, empréstimo pessoal, prestações de carro e seguros, um aumento de mais de 5,3 mil famílias em relação ao mês de Setembro (191.451). Desse total, 35,4% têm contas em atraso e 10,9% não terão condições de pagar as dívidas.

Daniel Lucas comprou cubo mágico por quatro Miserecas (Fotos: Marco Miatelo)

Poupar é se presentear - O assessor de Desenvolvimento do Cooperativismo do Sicredi Paulo Brum explica que o grande número de
endividados no País reflete o imediatismo do brasileiro. "Pior de tudo é ele não ter controle sosbre sua escolha", lamenta.

Brum aconselha ao trabalhador que, ao receber seu salário, se coloque em primeiro lugar. "A pessoa trabalha o mês inteiro, se desdobra faz horas a mais. Sempre digo que o trabalhador tem que se dar um presente primeiro e depois pagar as contas. Esse presente seria separar um valor e poupar, guardar o dinheiro. Ele é a máquina de fazer dinheiro, precisa se valorizar", aconselha.

"Pensa bem, se o indvíduo guardar R$ 2 por dia, ao final do mês, ele terá R$ 60. Ao final de três anos, serão R$ 2.372,27, em cinco anos serão R$ 3.956,00, em 10 serão R$ 9.108,56 . Poupando, o trabalhador poderá adquirir bens sem ter que cair nas ciladas dos parcelamentos. Tem gente que acha ruim, que é uma ecomomia pequena. Eu digo, o pior é não poupar nada", conclui.

Voluntários do Sicredi levaram ensinamentos e alegria à região mais pobre da Capital (Fotos: Marco Miatelo)

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